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Milei e Bolsonaro: o desprezo pelas universidades públicas

Bolsonaro e Milei nunca pensaram duas vezes antes de atacar as universidades públicas de seus respectivos países. Há uma agenda estratégica por trás dos ataques.

Por Deutsche Welle

Ganhou cinco prêmios Nobel, formou 16 presidentes e estava entre as 100 melhores universidades do mundo: essas são apenas algumas das conquistas da Universidade de Buenos Aires (UBA). Incrível, né? Mas isso não impediu Javier Milei, o polêmico presidente argentino, de descrever a universidade como "um espaço de doutrinação comunista e lavagem cerebral".

O ataque também afetou o orçamento das instituições públicas de ensino superior na Argentina. Atualmente, o país tem a maior inflação do mundo, cerca de 290 % anuais, mas foi liberado para a instituição o mesmo orçamento de 2023. Emiliano Yacobitti, o vice-reitor da UBA, disse em uma entrevista que o hospital universitário precisou até cancelar algumas cirurgias e que a instituição corre o risco de eventualmente não conseguir arcar mais com despesas operacionais básicas, como luz e água.

Tive a oportunidade de conversar com Estefanía Paola Cuello, advogada e professora de Teoria do Estado e História do Direito na Faculdade de Direito da UBA. "Sou contra as políticas de cortes levadas a cabo por Milei. As universidades favorecem a construção da identidade do país, uma vez que promovem e endossam a própria função do Estado. Atacar elas é atacar qualquer possibilidade de aproximação dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade", afirmou.

Segundo ela, governos como o de Milei tendem à disciplina e à censura dos centros de pensamento. "Contudo, no caso particular da Argentina, o atual executivo está adotando um papel exageradamente ridículo e desnecessário na sua gestão pública. Milei transcende os discursos comuns na América Latina que lutam contra o ‘marxismo cultural'. Ao lado de Milei, Bukele parece moderado e Bolsonaro sério. Mas sua busca vai além de uma posição ideológica. É a busca pelo posicionamento digital através do desprezo por qualquer manifestação cultural séria. O presidente argentino busca ser uma estrela das redes sociais, uma réplica vulgar de Bukele".

O caso Argentino me lembra muito o caso brasileiro. A USP, a Unesp, a Unicamp, a UFRJ, a UFRGS, a UFBA, a UFMG e muitas outras instituições de ensino superior público brasileiro são referência mundial, mas isso não as impediu de serem alvo de perseguição do ex-presidente, Jair Bolsonaro. Ele e Milei compartilham, além de outras características, um aparente ódio pelo ensino superior público, classificando as universidades como supostos centros de esquerda e espaços de comunismo, que fazem lavagem cerebral.

A UFRJ, assim como a UBA, chegou bem próximo de fechar as portas simplesmente por correr o risco de não conseguir pagar as despesas de luz.

Espaços plurais

A semelhança descrita acima não é coincidência e para entender melhor eu entrevistei Paolo Ricci, cientista político e professor da Universidade de São Paulo (USP). "Há certo consenso na literatura em chamar esses políticos de populistas. Em seus discursos, é uma constante a contraposição entre o povo, moralmente puro, e os "outros", a elite, vistos como corruptos e imorais fazendo amplo uso de uma linguagem emotiva. Na América Latina, a direita populista centra sua fala contra a esquerda taxada não apenas de ser corrupta, mas de ser comunista e socialista; uma caracterização extremamente marginal. Em geral, o que caracteriza um discurso populista é a simplificação de questões complexas dando a entender que os populistas possuem soluções para os problemas que os "outros" não conseguem enfrentar", afirmou.

Ele continua: "Um dos elementos destacados pelos estudiosos é o aspecto antipluralista dos populistas no sentido de se apresentar com os únicos que representam o povo. Aqui, portanto, temos que reconhecer um aspecto autoritário no populista, voltado para deslegitimar a ação do opositor em termos competitivos e representativos. Milei e Bolsonaro se enquadram nessa ideia. Se a literatura tem clareza sobre o populismo autoritário de Bolsonaro, Miliei ainda está sob avaliação, mas há fortes similaridades entre os dois".

O ataque às universidades, segundo ele, não é uma constante entre os governos populistas. Esses ataques no Brasil são "uma tentativa a mais de deslegitimar o PT e, mais em geral, a esquerda e suas pautas que encontram expressão no âmbito universitário, como as pautas identitárias".

Já na Argentina, segundo Cuello, "este movimento, talvez, tenha sido uma tentativa de se destacar pelo contraste e se opor diametralmente às políticas públicas características dos governos de Cristina Fernández de Kirchner e do peronismo em geral. Possivelmente, ele procurou atrair o eleitorado antiperonista e o emergente eleitorado libertário".

Além disso, os dois especialistas também concordam em um importante aspecto: não é verdade que há uma hegemonia esquerdista nas universidades públicas. Elas são, muito pelo contrário, espaços heterogêneos de correntes e posicionamentos.

Faço no mestrado em uma universidade pública e cursei a graduação em outra, ambas estão entre as melhores do país. São centros de excelência e que não "doutrinam" seus alunos, mas sim os provocam para despertar o próprio senso crítico.

Graças à formação que recebemos, conseguimos, inclusive, perceber o quanto governantes como os aqui descritos se maquiam com uma narrativa pró-povo, anticorrupção e a favor da liberdade, quando na verdade são antidemocracia e não se preocupam nem um pouco com próprio povo.

Muitos deles, talvez não coincidentemente, não estudaram em uma universidade pública. Se dedicassem o mesmo tempo que gastam falando mal delas as visitando, saberiam o que realmente acontece lá e talvez teriam posicionamentos diferentes e mais respeitosos com instituições que, inclusive, impulsionam o desenvolvimento do país.

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Vozes da Educação é uma coluna semanal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do Salvaguarda no Instagram em @salvaguarda1

Este texto foi escrito por Vinícius De Andrade e reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.

Autor: Vinícius De Andrade

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